Um interessante caso judicial em Valdocco

Uma carta ao magistrado da cidade de Turim, datada de 18 de abril de 1865, abre um interessante e inédito vislumbre da vida cotidiana em Valdocco naquele tempo.

Entre os jovens acolhidos em Valdocco no decênio de 1860, quando quase todos as oficinas para aprendizes, muitas vezes órfãos, foram abertas, havia alguns enviados pela segurança pública. Assim, o Oratório não só acolhia bons jovens e jovens vivazes e de bom coração, mas também jovens difíceis e problemáticos que tinhas às costas experiências decididamente negativas.

Talvez estejamos habituados a pensar que em Valdocco, com a presença de Dom Bosco, as coisas sempre correram bem, sobretudo no decênio de 1850 e princípios de 60, quando a Obra salesiana ainda não se espalhara e Dom Bosco vivia em contato direto e constante com os meninos. Mais tarde, contudo, com uma grande massa heterogênea de jovens, educadores, aprendizes, jovens estudantes, noviços, estudantes de filosofia e de teologia, alunos noturnos e trabalhadores “externos”, poderiam surgir dificuldades na gestão disciplinar da comunidade de Valdocco.

Um fato bastante sério
Uma carta ao magistrado da cidade de Turim, datada de 18 de abril de 1865, abre um interessante e inédito vislumbre da vida cotidiana de Valdocco naquela época. Nós a reproduzimos e depois a comentaremos.

Ao Magistrado Urbano da cidade de Turim

Em vista da citação a ser feita ao clérigo Mazzarello, assistente na oficina de encadernação da casa conhecida como Oratório de São Francisco de Sales; tendo visto também a citação a ser feita aos jovens Frederico Parodi, João Castelli e José Guglielmi, e tendo considerado cuidadosamente o seu conteúdo, o diretor deste estabelecimento, Padre João Bosco, em seu desejo de resolver o assunto com menos perturbação por parte das autoridades do tribunal da cidade, acredita poder intervir em nome de todos no caso do jovem Carlos Boglietti, disposto a dar a quem quer que seja as mais amplas satisfações.
Antes de mencionar o fato em questão, parece apropriado notar que o artigo 650 do código penal parece totalmente alheio ao assunto em questão, pois se fosse interpretado no sentido exigido pela corte urbana, seria introduzido no regime doméstico das famílias, e os pais e tutores não poderiam mais corrigir seus filhos ou evitar insolência e insubordinação, [o que] seria seriamente prejudicial à moralidade pública e privada.
Além disso, a fim de manter certos jovens sob controle, em sua maioria enviados pela autoridade governamental, obteve-se a faculdade de usar todos os meios considerados apropriados e, em casos extremos, enviar o braço da segurança pública, como já foi feito várias vezes.
Passando agora ao assunto de Carlos Boglietti, devemos lamentar, mas francamente afirmar que ele foi paternalmente advertido várias vezes em vão; que ele provou não apenas ser incorrigível, como insultou, ameaçou e afrontou o seu assistente, clérigo Mazzarello, diante de seus companheiros. Aquele assistente, que de disposição muito mansa e branda, ficou tão assustado com isso que a partir de então sempre esteve doente sem nunca ter podido retomar suas funções, e ainda está doente.
Após esse evento, Boglietti fugiu da casa sem dizer aos superiores a quem se dirigia, e só deu a conhecer \ sua fuga através de sua irmã quando soube que queria se entregar nas mãos da polícia. O que não foi feito para preservar a sua honra.
Entretanto, faz-se um pedido para reparar os danos que o assistente sofreu à sua honra e à sua pessoa, pelo menos até que ele possa retomar suas ocupações comuns.
Que os custos deste processo sejam suportados por ele. Que nem ele Carlos Boglietti, nem o Sr. Estevão Caneparo, seu parente ou conselheiro, venham ao referido estabelecimento para renovar os atos de insubordinação e escândalos já causados em outras ocasiões.
[Sac. Gio Bosco].

O que posso dizer? Em primeiro lugar, que a carta documenta como entre os jovens acolhidos em Valdocco nos anos sessenta, quando até então quase todas as oficinas de aprendizes, muitas vezes órfãos, tinham sido abertas, havia alguns enviados pela segurança pública. Assim, o Oratório não só acolheu rapazes como Domingos Sávio ou Francisco Besucco ou mesmo Miguel Magone, ou seja, jovens ótimos, bons, e de jovens vivazes, mas de bom coração, como também jovens difíceis, problemáticos, com experiências decididamente negativas às costas
Aos juveníssimos educadores salesianos de Valdocco foi confiada a árdua tarefa de reeducá-los, autorizados também a recorrer a “todos os meios considerados adequados”. Quais deles? Certamente o Sistema Preventivo de Dom Bosco, cuja validade foi demonstrada pela experiência de duas décadas em Valdocco. Mas quando os fatos foram postos à prova, “em casos extremos”, para os jovens mais incorrigíveis, foi preciso recorrer à mesma força pública que os havia levado até lá.

No caso em questão
Dom Bosco, diante de uma citação para comparecer à corte por um de seus jovens clérigos e alguns rapazes do Oratório, sentiu o dever de intervir diretamente junto à autoridade constituída para defender o seu jovem educador, salvaguardar a imagem positiva do seu Oratório e proteger a sua própria autoridade educativa. Com extrema clareza, ele indicou ao magistrado as possíveis consequências negativas, para si, para as famílias e para a sociedade em geral, da aplicação rígida, e em sua opinião injustificada, de um artigo do código penal.
Como excelente advogado, com uma arenga jurídico-educativa imprudente, Dom Bosco transformou a sua defesa em acusação e o acusador em acusado, a ponto de imediatamente pedir indenização pelos danos físicos e morais causados ao jovem assistente Mazzarello, que adoeceu e foi obrigado ao repouso forçado..

O resultado da contestação
Não nos é dado saber; provavelmente terminou em um impasse. Mas o caso revela-nos uma série de atitudes e de comportamentos que não só são pouco conhecidos sobre Dom Bosco, mas que, de certa maneira, são sempre relevantes. Assim, ficamos sabendo que, mesmo sob os olhos atentos de Dom Bosco, o Sistema Preventivo pode às vezes falhar. O primeiro interesse a ser salvaguardado devia ser sempre o de cada jovem, obviamente na condição de não entrar em conflito com o interesse superior de outros companheiros. Além disso, a imagem positiva da obra salesiana também deveria ser defendida nos foros judiciais apropriados. Nesse caso, porém, as possíveis consequências tiveram que ser sabiamente levadas em conta, a fim de não se enfrentarem surpresas desagradáveis.