Desde o início, a Sociedade Salesiana teve, como muitas outras ordens religiosas, um cardeal protetor. Com o passar do tempo, até o Concílio Vaticano II, houve nove cardeais protetores, um papel de grande importância para o crescimento da Sociedade Salesiana.
A instituição de cardeais protetores para congregações religiosas é uma tradição antiga que remonta aos primeiros séculos da Igreja, quando o Papa nomeava defensores e representantes da fé. Com o passar do tempo, essa prática se estendeu às ordens religiosas, para as quais um cardeal foi designado com a tarefa de proteger seus direitos e prerrogativas junto à Santa Sé. A Sociedade Salesiana de São João Bosco também desfrutou desse favor, tendo vários cardeais para representá-la e protegê-la nas sedes eclesiais.
Origem da função de Cardeal Protetor
O costume de ter um protetor remonta aos primeiros séculos do Império Romano, quando Rômulo, o fundador de Roma, criou duas ordens sociais: patrícios e plebeus. Cada plebeu podia eleger um patrício como protetor, estabelecendo um sistema de benefício mútuo entre as duas classes sociais. Essa prática também foi adotada posteriormente pela Igreja. Um dos exemplos mais antigos de um protetor eclesiástico é São Sebastião, nomeado pelo Papa Caio em 283 d.C. como defensor da Igreja de Roma.
No século XIII, a designação de protetores cardeais para ordens religiosas tornou-se uma prática estabelecida. São Francisco de Assis foi um dos primeiros a solicitar um cardeal protetor para sua ordem. Após uma visão em que seus frades estavam sendo atacados por aves de rapina, Francisco pediu ao Papa que designasse um cardeal como protetor deles. Inocêncio III concordou e nomeou o cardeal Ugolino Conti, sobrinho do papa. A partir de então, as ordens religiosas seguiram essa tradição para obter proteção e apoio em suas negociações com a Igreja.
Essa prática se espalhou quase como uma necessidade, já que as novas ordens mendicantes e itinerantes tinham um estilo de vida diferente daquele dos monges com residência fixa, bem conhecidos pelos bispos locais. As distâncias geográficas, os diferentes sistemas políticos dos locais em que as novas ordens religiosas operavam e as dificuldades de comunicação na época exigiam uma figura autorizada que conhecesse bem seus problemas e necessidades. Essa figura poderia representá-las na Cúria Romana, defender seus direitos e interesses e interceder junto à Santa Sé em caso de necessidade. O cardeal protetor não tinha jurisdição ordinária sobre as ordens religiosas; seu papel era o de um protetor benevolente, embora em circunstâncias específicas ele pudesse receber poderes delegados.
Essa prática também se estendia a outras ordens religiosas e, no caso da Sociedade Salesiana, os cardeais protetores desempenharam um papel crucial para garantir o reconhecimento e a proteção da jovem congregação, especialmente em seus primeiros anos, quando ela estava tentando se consolidar dentro da estrutura da Igreja Católica.
A escolha do cardeal protetor
A relação entre Dom Bosco e a hierarquia eclesiástica era complexa, especialmente nos primeiros anos da fundação da congregação. Nem todos os cardeais e bispos viam com bons olhos o modelo educacional e pastoral proposto por Dom Bosco, em parte por causa de sua abordagem inovadora e em parte por causa de sua insistência em atender às classes mais pobres e desfavorecidas.
A escolha de um cardeal protetor não era aleatória, mas feita com muito cuidado. Normalmente, buscava-se um cardeal que estivesse familiarizado com a ordem ou que tivesse demonstrado interesse no tipo de trabalho realizado pela congregação. No caso dos salesianos, isso significava procurar cardeais que tivessem um foco especial em juventude, educação ou missões, já que essas eram as principais áreas de atividade da Sociedade. Naturalmente, a nomeação final dependia do Papa e da Secretaria de Estado.
O papel do Cardeal Protetor para os salesianos
Para a Sociedade Salesiana, o Cardeal Protetor era uma figura-chave em sua interação com a Santa Sé, ajudando a mediar quaisquer disputas, garantindo a interpretação correta das regras canônicas e assegurando que as necessidades da ordem fossem compreendidas e respeitadas. Diferentemente de algumas congregações mais antigas, que já haviam estabelecido um forte relacionamento com as autoridades eclesiásticas, os salesianos, nascidos em uma era de rápidas mudanças sociais e religiosas, precisavam de um apoio significativo para enfrentar os desafios iniciais, tanto interna quanto externamente.
Um dos aspectos mais importantes do papel do Cardeal Protetor era sua capacidade de apoiar os salesianos em suas relações com o Papa e a Cúria. Esse papel de mediador e protetor proporcionou à congregação um canal direto com os escalões superiores da Igreja, permitindo que expressassem preocupações e solicitações que, de outra forma, poderiam ter sido ignoradas ou adiadas. O cardeal protetor também era responsável por garantir que a Sociedade Salesiana cumprisse as diretrizes do Papa e da Igreja, assegurando que sua missão permanecesse alinhada com os ensinamentos católicos.
Em uma de suas visitas a Roma, em fevereiro de 1875, Dom Bosco pediu ao Santo Padre Pio IX a graça de ter um cardeal protetor:
“Na mesma audiência, ele perguntou ao Papa se deveria, como as outras congregações religiosas, pedir um Cardeal Protetor. O Papa respondeu-lhe textualmente: – Enquanto eu estiver vivo, serei sempre seu Protetor e de sua Congregação” (MBp XI, 92).
No entanto, percebendo a necessidade de uma pessoa de referência que tivesse autoridade para realizar várias tarefas para a Sociedade Salesiana, em 1876 Dom Bosco voltou a pedir ao Papa um Cardeal Protetor:
“Tendo eu depois pedido que, para resolver nossos negócios eclesiásticos em Roma, indicasse para nós um Cardeal Protetor que defendesse nossas causas junto à Santa Sé, como têm todas as demais Ordens e Congregações, sorridente, disse-me: – Mas quantos protetores querem? Já não os têm até mais de um? – Fazendo-me entender: Quero ser o Cardeal Protetor de vocês; querem ainda outros? Ouvindo palavras tão bondosas, agradeci-lhe de todo o coração e lhe disse: “Santo Padre, quando diz isso, eu não procuro mais outro defensor”. (MBp XII, 192).
Depois dessa resposta satisfatória, Dom Bosco ainda obteve um Cardeal Protetor no mesmo ano de 1876:
“3º – Pedi um Cardeal Protetor para comunicar com Sua Santidade: a princípio parecia que queria ele mesmo ser nosso Protetor, mas quando lhe notei que o Cardeal Protetor era precisamente uma referência para os assuntos salesianos com Sua Santidade, pois não poderíamos tratar nas Sagradas Congregações porque elas estavam distantes, Sua Santidade precisamente teria sido de fato nosso Protetor; o Cardeal teria lidado com nossas coisas nos vários Dicastérios para relatá-las a Sua Santidade depois. – Neste sentido está bem, ele acrescentou, e vou comunicar tudo à Congregação dos Bispos e Regulares. – O cardeal é o Em.mo Oreglia, que será o protetor de nossas Missões, dos Cooperadores Salesianos, da Obra de Maria Auxiliadora, da Arquiconfraria dos devotos de Maria Auxiliadora e de toda a Congregação Salesiana para os assuntos que devem ser tratados em Roma na Santa Sé”. (MBp XIII, 440)
Dom Bosco mencionou esse cardeal em seu escrito “A mais bela flor do colégio apostólico, isto é, a eleição de Leão XIII” (pp. 193-194):
“XXVIII. Card. Luís Oreglia
Luís Oreglia dos Barões de Santo Estêvão honra o Piemonte como o Cardeal Bilio, pois nasceu em Benevagienna, na diocese de Mondovì, em 9 de julho de 1828. Fez seus estudos teológicos em Turim sob a orientação de nossos competentes professores, que admiravam sua mente perspicaz e seu incansável amor pelo trabalho. Em seguida, foi para Roma, para a Academia Eclesiástica, onde completou com louvor sua educação religiosa e se dedicou ao estudo de idiomas, especialmente o alemão, no qual é excelente. Tendo entrado na Prelatura, foi nomeado, em 15 de abril de 1858, referendário da Assinatura Apostólica, e depois enviado como internúncio para Haia, na Holanda, de onde seguiu para Portugal, depois de ter sido nomeado arcebispo de Damiata, sucedendo nesse importante cargo diplomático o eminentíssimo cardeal Perrieri. Ele encontrou certas tradições de Pombal ainda vivas em Portugal, contra as quais lutou com grande inteligência e coragem. Por isso, não agradou muito aos governantes da época. E voltou a Roma e o Santo Padre, para mostrar que se deixou de representar a Santa Sé em Portugal não foi por nenhum demérito, criou-o e o fez Cardeal no Consistório de 22 de dezembro de 1873, dando-lhe o título de Santo Anastácio e nomeando-o Prefeito da Sagrada Congregação das Indulgências e Sagradas Relíquias. O Cardeal Oreglia acrescentou às nobres maneiras do cavalheiro as virtudes do sacerdote exemplar. Pio Nono sempre o estimou e amava sua conversa cheia de reserva e graça. Ele vai devagar para se dedicar a algum negócio, mas, quando fala uma palavra, não se importa com os trabalhos e problemas, desde que seja bem-sucedido. Ele é muito indulgente. O novo Pontífice o tem em alta consideração e o confirmou no cargo de prefeito da Sagrada Congregação de Indulgências e Sagradas Relíquias”.
O cardeal Luís Oreglia permaneceu como protetor dos salesianos de 1876 a 1878, embora já tivesse desempenhado essa tarefa informalmente antes de 1876.
Entretanto, oficialmente, o primeiro cardeal protetor dos salesianos foi Lourenço Nina, que ocupou esse cargo de 1879 a 1885. Leão XIII concordou com o pedido de Dom Bosco de ter um cardeal protetor para a Sociedade, e a notificação oficial veio após uma audiência em 29 de março de 1879:
“Seis dias depois desta audiência, por meio de um bilhete da Secretaria de Estado, assinado por Mons. Serafim Cretoni, Dom Bosco foi avisado oficialmente da nomeação do Protetor, nestes honrosos termos: «A Santidade de Nosso Senhor, querendo que a Congregação Salesiana, que dia a dia vai recebendo novos títulos de especial benevolência da Santa Sé por causa das obras de caridade e de fé, implantadas nas várias partes do mundo, tenha especial Protetor, dignou-se benignamente conferir esta função ao Sr. Cardeal Lourenço Nina, seu Secretário de Estado”. No tempo de Pio IX, o Card. Oreglia era o protetor, mas unicamente a título oficioso, pois esse Pontífice tinha reservado para si a proteção da Sociedade, necessitada de particular e paterna assistência em seus primórdios. Agora, ao invés, tinha o Protetor verdadeiro e próprio, como outras Congregações religiosas. A escolha não poderia ser de Prelado mais benévolo. Conhecendo Dom Bosco antes do Cardinalato, nutria para com ele enorme consideração e lhe era sinceramente afeiçoado. Solicitado por Dom Bosco para ser o protetor dos salesianos, mostrara-se muito disposto, dizendo-lhe: – “Não poderia oferecer-me para isso ao Santo Padre. Mas se o Santo Padre me diz, aceito já”. – Comprovou seu bem-querer quando o Beato lhe propôs que, tendo Sua Eminência muitos afazeres, lhe indicasse alguém para tratar do caso das Missões. O Cardeal respondeu: – Não, não; quero que nós mesmos tratemos disso diretamente; passe amanhã às quatro e meia e conversaremos melhor. É um milagre uma Congregação prosperar nestes tempos em meio a ruínas de outras, quando tudo se quereria destruir. – O Beato experimentou frequentes vezes o quanto lhe fosse útil tão afetuosa proteção. Tendo voltado a Turim e comunicado ao Capítulo Superior a designação pontifícia de Protetor, enviou ao Cardeal, em nome de toda a Congregação, carta de agradecimento, por ter-se dignado aceitar essa função, de homenagem muito cordial e de oração pelas Missões, e talvez também para os privilégios; é o que se pode deduzir da seguinte resposta de Sua Eminência”. (MBp XIV, 65-66)
De agora em diante, a Congregação Salesiana terá sempre um cardeal protetor com grande influência na Cúria Romana.
Além dessa figura oficial, sempre houve outros cardeais e altos prelados que, compreendendo a importância da educação, apoiaram os salesianos. Entre eles estão os cardeais Alexandre Barnabò (1801-1874), José Berardi (1810-1878), Caetano Alimonda (1818-1891), Luís Maria Bilio (1826-1884), Luís Galimberti (1836-1896), Augusto Silj (1846-1926) e muitos outros.
Elenco dos Protetores da Sociedade Salesiana de São João Bosco:
Cardeal Protetor SDB | Período | Nomeação | |
Beato Papa Pio IX | |||
1 | Luís OREGLIA | 1876-1878 | |
2 | Lourenço NINA | 1879-1885 | 29.03.1879 (MB XIV,78-79) |
3 | Lúcido Maria PAROCCHI | 1886-1903 | 12.04.1886 (ASV, Segr. Stato, 1886, prot. 66457; ASC D544, Cardeais Protetores, Parocchi) |
4 | Mariano RAMPOLLA DEL TINDARO | 1903-1913 | 31.03.1093 (carta do Cardeal Rampolla a Dom Rua) |
5 | Pedro GASPARRI | 1914-1934 | 09.10.1914 (AAS 1914-006, p. 22) |
6 | Eugênio PACELLI (Pio XII) | 1935-1939 | 02.01.1935 (AAS 1935-027, p.116) |
7 | Vicente LA PUMA | 1939-1943 | 24.05.1939 (AAS 1939-031, p. 281) |
8 | Carlos SALOTTI | 1943-1947 | 29.12.1943 (AAS 1943-036, p. 61) |
9 | Bento Aloísio MASELLA | 1948-1970 | 10.02.1948 (AAS 1948-040, p.165) |
O último protetor dos salesianos foi o cardeal Bento Aloísio Masella, pois o papel dos protetores foi anulado pela Secretaria de Estado na época do Concílio Vaticano II, em 1964. Os protetores titulares permaneceram até sua morte e, com eles, o cargo que receberam também morreu.
Isso aconteceu porque, no contexto contemporâneo, o papel do cardeal protetor perdeu parte de sua relevância formal. A Igreja Católica passou por inúmeras reformas durante o século XX, e muitas das funções que antes eram delegadas aos cardeais protetores foram incorporadas às estruturas oficiais da Cúria Romana ou se tornaram obsoletas devido a mudanças na governança eclesiástica. Entretanto, mesmo que a figura do cardeal protetor não exista mais com as mesmas prerrogativas do passado, o conceito de proteção eclesiástica continua importante.
Hoje, os salesianos, como muitas outras congregações, mantêm um relacionamento próximo com a Santa Sé por meio de vários dicastérios e escritórios curiais, em particular o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Além disso, muitos cardeais continuam a apoiar pessoalmente a missão dos salesianos, mesmo sem o título formal de protetor. Essa proximidade e esse apoio continuam sendo essenciais para garantir que a missão salesiana continue a responder aos desafios do mundo contemporâneo, particularmente na educação dos jovens e nas missões.
A instituição de cardeais protetores para a Sociedade Salesiana foi um elemento crucial em seu crescimento e consolidação. Graças à proteção oferecida por essas eminentes figuras eclesiásticas, Dom Bosco e seus sucessores puderam levar adiante a missão salesiana com maior serenidade e segurança, sabendo que podiam contar com o apoio da Santa Sé. O trabalho dos cardeais protetores provou ser essencial não apenas para defender os direitos da congregação, mas também para favorecer sua expansão pelo mundo, ajudando a difundir o carisma de Dom Bosco e seu sistema educacional.