🕙: 10 min.
image_pdfimage_print

O sonho de Dom Bosco na véspera da partida dos missionários para a América é um evento rico em significado espiritual e simbólico na história da Congregação Salesiana. Naquela noite, entre 31 de janeiro e 1º de fevereiro, Dom Bosco teve uma visão profética que destaca a importância da piedade, do zelo apostólico e da confiança total na providência divina para o sucesso da missão. Esse episódio não apenas encorajou os missionários, mas também consolidou a convicção de Dom Bosco sobre a necessidade de expandir sua obra além das fronteiras italianas, levando educação, apoio e esperança às novas gerações em terras distantes.


            Nesse meio tempo, chegou a véspera da partida. Durante todo o dia, o pensamento de que o Bispo e os outros estariam indo para tão longe e a absoluta impotência de acompanhá-los, como nas ocasiões anteriores, até o embarque, ou melhor, a impossibilidade de pelo menos se despedir deles na igreja de Maria Auxiliadora, causaram-lhe abalos de emoção, que às vezes o oprimiam e o deixavam abatido. Agora, na noite de 31 de janeiro para 1º de fevereiro, ele teve um sonho semelhante ao de 1883 sobre as Missões. Ele o contou ao P. Lemoyne, que imediatamente o anotou. É o seguinte.


            Pareceu-me que eu estava acompanhando os missionários em sua viagem. Conversamos por um breve momento antes de deixar o Oratório. Eles ficaram ao meu redor e pediam meus conselhos; e me parecia que eu estava lhes dizendo:
            – Não com a ciência, não com a saúde, não com as riquezas, mas com zelo e piedade, vocês farão um grande bem, promovendo a glória de Deus e a salvação das almas.
            Estávamos pouco antes no Oratório e, sem saber por qual caminho havíamos passado e por quais meios, nos encontramos quase imediatamente na América. No final da viagem, encontrei-me sozinho no meio de uma vasta planície entre o Chile e a República Argentina. Meus queridos missionários estavam todos espalhados aqui e ali naquele espaço sem limites. Ao olhar para eles, fiquei admirado, pois pareciam poucos. Depois que tantos Salesianos foram enviados à América em várias épocas, pensei que deveria ter visto um número maior de missionários. Mas depois, refletindo, percebi que, se o número deles parecia pequeno, era porque estavam espalhados em muitos lugares, como sementes que tinham de ser transportadas para outro lugar para serem cultivadas e multiplicadas.
            Naquela planície, havia muitas e muito longas estradas ao longo das quais estavam espalhadas numerosas casas. Essas estradas não eram como as estradas desta terra, e as casas não eram como as casas deste mundo. Eram objetos misteriosos e, eu quase diria espirituais. Essas estradas eram percorridas por veículos, ou por meios de transporte, que ao correrem sucessivamente assumiam mil aspectos fantásticos e mil formas diferentes, embora magníficas e estupendas, de modo que não consigo definir ou descrever nenhuma delas. Observei com assombro que, quando os veículos se aproximavam de grupos de casas, aldeias, cidades, passavam bem alto, de modo que o viajante podia ver abaixo de si os telhados das casas, que, embora fossem muito altos, estavam também muito abaixo daquelas estradas que, enquanto no deserto aderiam ao solo, quando se aproximavam de lugares habitados tornavam-se aéreas, quase formando uma ponte mágica. Lá de cima era possível ver os habitantes em suas casas, pátios, ruas e, no campo, ocupados com o trabalho em suas propriedades.
            Cada uma daquelas estradas levava a uma de nossas missões. No final de uma via muito longa que se estendia pelo lado chileno, eu podia ver uma casa [todas as particularidades topográficas que precedem e seguem parecem indicar a casa de Fortín Mercedes, na margem esquerda do Colorado] com muitos irmãos Salesianos, que praticavam a ciência, a piedade, várias artes e ofícios e a agricultura. Ao sul ficava a Patagônia. No lado oposto, em um relance, podia ver todas as nossas casas na República Argentina. Depois, no Uruguai, Paysandú, Las Piedras, Villa Colón; no Brasil, o Colégio de Nicteroy [Niterói] e muitos outros internatos espalhados pelas províncias daquele império. Por último, a oeste, abria-se outra estrada muito longa, atravessando rios, mares e lagos chegava até países desconhecidos. Nessa região, vi poucos Salesianos. Observei atentamente e só consegui ver dois.
            Naquele momento, apareceu perto de mim um personagem de aparência nobre e amável, de pele pálida, gordo, com barba aparada de modo a parecer sem barba, um homem de idade adulta. Ele estava vestido de branco, com uma espécie de capa cor-de-rosa tecida com fios dourados. Tudo brilhava. Encontrei meu intérprete lá.
            – Onde estamos aqui? perguntei, apontando para este último país.
            – Estamos na Mesopotâmia, respondeu o intérprete.
            – Na Mesopotâmia? respondi; mas aqui é a Patagônia.
            – Eu lhe digo, respondeu o outro, esta é a Mesopotâmia.
            – Mas mesmo assim… mesmo assim… não consigo me convencer disso.
            – Mas é isso mesmo! Esta é a Me-so-po-tâ-mi-a, concluiu o intérprete, silabando a palavra para que ela ficasse bem impressa.
            – Mas por que os Salesianos que vejo aqui são tão poucos?
            – O que não é, será, concluiu meu intérprete.
            Enquanto isso, sempre parado naquela planície, eu olhava para todos aqueles caminhos intermináveis e contemplava, de maneira muito clara, mas inexplicável, os lugares que são e serão ocupados pelos Salesianos. Quantas coisas magníficas eu vi! Vi todos cada um dos colégios. Vi como que em um único ponto o passado, o presente e o futuro de nossas missões. Como vi tudo em um único olhar, é muito difícil, de fato impossível, mesmo que superficialmente, representar uma pequena ideia desse espetáculo. Apenas o que vi naquela planície do Chile, Paraguai, Brasil e República Argentina exigiria um grande volume, se eu quisesse dar algumas informações resumidas. Vi também, nessa vasta planície, a grande quantidade de selvagens que estão espalhados pelo Pacífico até o Golfo de Ancud, no Estreito de Magalhães, no Cabo Horn, nas Ilhas Diego Ramírez, nas Ilhas Malvinas. Tudo destinado aos Salesianos. Vi que agora os Salesianos apenas semeiam, mas nossa posteridade colherá. Homens e mulheres nos reforçarão e se tornarão pregadores. Seus próprios filhos, que parecem quase impossíveis de conquistar para a fé, se tornarão, eles mesmos, evangelizadores de seus parentes e amigos. Os Salesianos terão sucesso em tudo com humildade, com trabalho, com temperança. Todas as coisas que vi naquele momento e que vi mais tarde diziam respeito aos Salesianos, ao seu estabelecimento regular naqueles países, ao seu maravilhoso crescimento, à conversão de tantos nativos e de tantos europeus ali estabelecidos. A Europa vai se espalhar pela América do Sul. A partir do momento em que as igrejas começaram a ser despojadas na Europa, a prosperidade do comércio começou a diminuir, e foi entrando cada vez mais em declínio. Assim, os trabalhadores e suas famílias, levados pela miséria, correrão para buscar abrigo nessas novas terras hospitaleiras.
            Vendo o campo que o Senhor nos havia designado e o futuro glorioso da Congregação Salesiana, pareceu-me que deveria iniciar minha viagem de volta à Itália. Fui transportado rapidamente por uma estrada estranha e muito alta, e assim cheguei ao Oratório em pouco tempo.  Praças, ruas, jardins, avenidas, ferrovias, muros da cidade, o campo e as colinas ao redor, as cidades, os vilarejos da província, a gigantesca cadeia dos Alpes coberta de neve estavam diante de meus olhos, apresentando-me um panorama estupendo. Vi os jovens lá embaixo no Oratório, que pareciam tantos ratinhos. Mas o número deles era extraordinariamente grande; padres, clérigos, estudantes, líderes artísticos se encontravam por toda parte. Muitos saíram em procissão e outros se juntaram às fileiras dos que saíram. Era uma procissão contínua.
            Todos estavam se reunindo naquela vasta planície entre o Chile e a República Argentina, para a qual eu logo estava de volta em um piscar de olhos. Eu os estava observando. Um jovem padre que se parecia com o nosso P. Pavia, mas que não era, estava observando-os com um ar afável, fala cortês, aparência cândida e pele de menino, veio em minha direção e disse:
            – Aqui estão as almas e os países destinados aos filhos de São Francisco de Sales.
            Fiquei espantado com o fato de que a multidão que havia se reunido ali desapareceu em um instante e, ao longe, mal se podia ver a direção que haviam tomado.
            Observo aqui que, ao narrar meu sonho, estou fazendo um resumo, e não me é possível especificar a sucessão exata dos magníficos espetáculos que se apresentaram a mim e os vários eventos incidentais. O espírito não se detém, a memória se esquece, a palavra não é suficiente. Além do mistério que envolvia essas cenas, elas se alternavam, às vezes se entrelaçavam, e muitas vezes se repetiam de acordo com as várias uniões, separações ou partidas dos missionários, e com a reunião ou o afastamento dos povos que eram chamados à fé ou à conversão. Repito: via em um ponto o presente, o passado, o futuro dessas missões, com todas as fases, os perigos, os sucessos, os fracassos momentâneos ou as desilusões que acompanharão esse Apostolado. Então entendia tudo claramente, mas agora é impossível desvendar essa mistura de fatos, de ideias, de personagens. Seria como alguém que quisesse compreender em uma única história e reduzir a um único fato e unidade todo o espetáculo do firmamento, narrando o movimento, o esplendor, as propriedades de todas as estrelas com suas relações e leis particulares e recíprocas; enquanto uma única estrela daria matéria para a atenção e o estudo da mente mais viva. E observo novamente que estamos lidando aqui com coisas que não têm relação com objetos materiais.
            Retomando a história, digo que fiquei surpreso ao ver tal multidão desaparecer. Dom Cagliero estava ao meu lado naquele momento. Alguns missionários estavam a certa distância. Muitos outros estavam ao meu redor com um bom número de cooperadores Salesianos, entre os quais distingui Dom Espinosa, Doutor Torrero, Doutor Caranza e o Vigário Geral do Chile [talvez se quisesse falar de Dom Domingos Cruz, Vigário Capitular da Diocese de Concepción]. Em seguida, o intérprete habitual veio até mim, conversando com Dom Cagliero e vários outros, enquanto investigávamos se aquele fato tinha algum significado. Da maneira mais cortês, o intérprete me disse:
            – Ouça e o senhor verá.
            E eis que, naquele momento, a vasta planície se transformou em um grande salão. Não posso descrever exatamente como era sua magnificência e riqueza. Digo apenas que, se fosse para descrevê-lo, ninguém poderia sustentar seu esplendor nem mesmo com imaginação. Sua largura era tal que não se podia ver suas paredes laterais. Sua altura não podia ser alcançada. Toda a abóbada terminava em arcos muito altos, muito largos e muito resplandecentes, e não se podia ver em que suporte eles se apoiavam. Não havia pilares ou colunas. Em geral, parecia que a cúpula daquele grande salão era de um linho cândido, como uma tapeçaria. O mesmo acontecia com o piso. Não havia luzes, nem sol, nem lua, nem estrelas, mas sim um esplendor geral, espalhado igualmente por toda parte. A própria brancura dos linhos brilhava e tornava visível e agradável cada parte, cada ornamento, cada janela, cada entrada, cada saída. Ao redor, difundia-se uma doce fragrância, que era uma mistura de todos os odores mais agradáveis.
            Um fenômeno foi visto naquele momento. Havia ali um grande número de mesas como em um refeitório, com um comprimento extraordinário. Havia mesas em todas as direções, mas todas convergiam em um único centro. Elas estavam cobertas com toalhas de mesa elegantes e, sobre elas, estavam dispostos em ordem belos vasos de cristal nos quais havia muitas e variadas flores.
            A primeira coisa que Dom Cagliero notou foi:
            – As mesas estão aí, mas onde estão as comidas?
            De fato, nenhuma comida ou bebida estava posta, nem havia pratos, xícaras ou outros recipientes para colocar a comida.
            O amigo intérprete então respondeu:
            – Os que aqui vierem, neque sitient, neque esurient amplius (Não terão mais fome, nem sede – Ap 7,16).
            Dito isso, as pessoas começaram a entrar, todas vestidas de branco com uma faixa simples como um colar, da cor de uma rosa bordada com fios de ouro, que envolvia o pescoço e os ombros. Os primeiros a entrar eram em número limitado. Apenas alguns num pequeno grupo. Assim que entraram no grande salão, foram se sentar ao redor de uma mesa preparada para eles, cantando: Viva! Mas, depois deles, vieram outros grupos mais numerosos, cantando: Triunfo! E então começou a aparecer uma variedade de pessoas, grandes e pequenas, homens e mulheres, de todas as gerações, diferentes em cor, forma e atitude, e de todos os lados ressoavam canções: Viva! era cantado por aqueles que já estavam em seus  lugares. Triunfo! era cantado por aqueles que entravam. Cada multidão que entrava era de nações ou partes de nações que seriam convertidas pelos missionários.
            Olhei para aquelas mesas intermináveis e soube que ali, sentadas e cantando, estavam muitas de nossas irmãs e um grande número de nossos irmãos. Esses, no entanto, não tinham o distintivo de sacerdotes, clérigos ou freiras, mas, como os outros, usavam o manto branco e a capa cor-de-rosa.
            Mas meu espanto aumentou quando vi homens de aparência rude com o mesmo traje dos outros e cantando: Viva! Triunfo! Naquele momento, nosso intérprete disse:
            – Os estrangeiros, os selvagens que beberam o leite da palavra divina de seus educadores, tornaram-se arautos da palavra de Deus.
            Também observei no meio da multidão um número enorme de crianças com uma aparência rude e estranha e perguntei:
            – E essas crianças, cuja pele é tão áspera que parece a de um sapo, são tão belas e têm uma cor tão resplandecente? Quem são elas?
            O intérprete respondeu:
            – São os filhos de Cam que não renunciaram à herança de Levi. Eles fortalecerão os exércitos para proteger o reino de Deus, que finalmente chegou também entre nós. Seu número era pequeno, mas os filhos de seus filhos foram aumentando. Agora ouça e veja; mas o senhor não pode entender os mistérios que verá.
            Aqueles jovens pertenciam à Patagônia e ao sul da África.
            Naquele momento, as fileiras de pessoas que entraram naquele salão extraordinário aumentaram tanto que todas as cadeiras pareciam estar ocupadas. As cadeiras e os assentos não tinham uma forma específica, mas assumiam a forma que cada um desejava. Todos estavam felizes com o assento que ocupavam e com o assento que os outros ocupavam.
            E eis que, enquanto eles gritavam de todos os lados Viva! Triunfo! eis que finalmente uma grande multidão chegou, vindo alegremente ao encontro dos outros que já haviam entrado e estavam cantando: Aleluia, glória, triunfo!
            Quando o salão parecia completamente cheio, e as milhares de pessoas reunidas não podiam ser contadas, houve um profundo silêncio, e então aquela multidão começou a cantar dividida em vários coros.
            O primeiro coro: Appropinquavit in nos regnum Dei (O reino de Deus está próximo, Lc 10,11); laetentur Coeli et exultet terra (Alegrem-se os céus, exulte a terra, 1Cor 16,31); Dominus regnavit super nos (O Senhor reinou sobre nós); alleluia.
            Outro coro: Vicerunt; et ipse Dominus dabit edere de ligno vitae et non esurient in aeternum: alleluia (Ao vencedor darei alimento da árvore da vida e ele não terá fome na eternidade; aleluia, Ap 2,7).
            Um terceiro coro: Laudate Dominum omnes gentes, laudate eum omnes populi. (Todos os povos, louvem o Senhor, todos os povos, cantem o seu louvor, Sl 117,1).
            Enquanto cantavam essas e outras coisas, e se alternavam, de repente houve um profundo silêncio pela segunda vez. Então, vozes começaram a ressoar do alto e de longe. O significado do cântico era este, com uma harmonia que não pode ser expressa de forma alguma: Soli Deo honor et gloria in saecula saeculorum (Somente a Deus honra e glória pelos séculos dos séculos, 1Tm 1,17). Outros coros, sempre altos e distantes, respondiam a essas vozes: Semper gratiarum actio illi qui erat, est, et venturus est. Illi eucharistia, illi soli honor sempiternus (Ação de graças na eternidade àquele que era, que é e que há de vir. A ele a Eucaristia, a ele somente a honra eterna).
            Mas, naquele momento, os coros se abaixaram e se aproximaram. Entre esses músicos celestiais estava Luís Colle. Todos os outros que estavam no salão começaram a cantar e se juntaram, unindo suas vozes à semelhança de instrumentos musicais extraordinários, com sons cuja extensão não tinha limites. Essa música parecia ter ao mesmo tempo mil notas e mil graus de elevação que se combinavam para formar um único acorde de vozes. As vozes no topo subiam tão alto que não se pode imaginar. As vozes dos que estavam no salão desciam sonoramente, arredondadas tão baixo que não se pode expressar. Todas formavam um só coro, uma só harmonia, mas tanto os baixos e como os altos com tanto gosto e beleza e com tanta penetração em todos os sentidos do homem e absorção deles, que o homem se esquecia de sua própria existência; e eu caí de joelhos aos pés de Dom Cagliero, exclamando:
            – Oh, Cagliero! Estamos no paraíso!
            Dom Cagliero me pegou pela mão e respondeu:
            – Não é o paraíso, é uma imagem simples e muito tênue do que realmente será o paraíso.
            Enquanto isso, unanimemente, as vozes dos dois grandiosos coros continuavam e cantavam com inexprimível harmonia: Soli Deo honor et gloria, et triumphus alleluia, in aeternum in aeternum! (Somente a Deus honra e glória e triunfo aleluia, para todo o sempre!) Aqui eu me esqueci de mim mesmo e não sei mais o que aconteceu comigo. De manhã, tive dificuldade para sair da cama; mal conseguia me lembrar de mim mesmo quando fui celebrar a Santa Missa.
            O principal pensamento que permaneceu comigo depois desse sonho foi o de dar a Dom Cagliero e aos meus queridos missionários um aviso da maior importância com relação ao futuro destino de nossas missões: – Que todas as solicitudes dos Salesianos e das Irmãs de Maria Auxiliadora sejam dirigidas à promoção das vocações eclesiásticas e religiosas.
(MB XVII, 299-305)